Luiz Carlos Sá
Era o inverno de 94 e eu estava perdido em algum lugar entre Rio das Ostras – de onde havia saído de manhã – e Além Paraíba, onde deveria estar à noite para um show. Metido a 4X4 com minha Quantum quase zero eu começava a lamentar a hora em que resolvera embrenhar-me pela então ainda pouco explorada serra do vale do Sana para cortar – cortar?!- caminho até a Rio Bahia. Sinalização inexistente, nenhuma casa ou vivalma à vista, eu já descera e subira vales sem fim e depois de quatro horas de viagem estava sem noção do que mais pudesse fazer, a Quantum arrastando o peito-de-aço, acessório que eu jamais dispensava, nas pedras agudas de uma estrada digna de rallye. No topo da montanha passei um corte extremamente difícil e de repente o leito pedregoso cercado pela semi-aridez de extensos pastos secos transformou-se numa trilha macia envolta em mata atlântica. O ar esfriou e tive que fechar os vidros, enquanto a trilha se estreitava mais e mais. Passava das duas da tarde, o que me trouxe um princípio de preocupação. E se a trilha acabasse e eu tivesse que voltar até sabia Deus onde pra recomeçar a viagem por Itaboraí, Magé, Teresópolis?… isso se o peito-de-aço da Quantum resistisse o suficiente.
Mas o Destino, embora caçador, sempre dá uma colher de chá pros aventureiros do meu tipo, gente que prefere arriscar na beleza que encarar a mesmice segura. Depois de uma curva fechada a estrada bifurcou-se de novo. À direita, nada. À esquerda, um pouco mais adiante, um jipinho Gurgel parado, com duas moças e um homem do lado de fora. O ruído da minha chegada fez com que o homem corresse em minha direção, acenando. Parei.
– E aí, amigo, está indo pra onde? – perguntou ele sem nenhuma introdução cerimoniosa, que não teria mesmo lugar naquela situação.
– Estou tentando ir pra Além Paraíba, mas estou perdido.
– Pois é, meu carro parou e eu tinha que levar as meninas pra casa…
– Se você me disser como eu faço pra deixar as moças e chegar em Além Paraíba antes das seis, eu topo.
Dadas as devidas explicações, descobri que ainda estava a umas duas horas de Sapucaia, lar das moças, e de lá mais uns quarenta minutos até meu destino. Nada mau pra quem se achava irremediavelmente perdido, né não? E lá vieram as duas, belezas escondidas atrás dos nenhuns artifícios. Deviam estar entre os vinte e vinte e cinco, uma mais morena a outra mais branquinha, mas ambas tão mineiras interioranas quanto o pão-de-queijo. Queriam ir juntas no banco de trás, mas o homem insistiu para que a branquinha fosse ao meu lado:
– Falta de educação, o moço vai parecer chofer! – e elas riram aquelas risadinhas tímidas…
Puxei conversa, tirando água de pedra até que elas ficassem um pouco mais à vontade. Branquinha se chamava Helena e Morena, Maria Antonia. Eram professoras primárias e percorriam diariamente, ida e volta, cento e vinte quilômetros por aquelas estradas rigorosas em companhia do seu Manoel, capataz da fazenda que mantinha a escola onde elas davam aula para quase quarenta crianças e adultos. Saíam de Sapucaia no primeiro ônibus para Bom Jardim, onde ele as pegava e levava até perto de Sana, onde ficava a fazenda. Voltavam na hora do almoço e chegavam em casa lá pelas três. Porque, perguntei, na minha dureza urbanóide, tanto esforço? Não poderiam exercer sua profissão em Além Paraíba ou nas cidades próximas? Maria Antonia respondeu lá de trás, voz firme e sem dúvidas:
– Mas é lá que eles precisam da gente…
Moderei minha boca grande, burra e egoísta e desviei o assunto. Bom, e o que acontecia em Sapucaia? Helena falou que no momento nada, mas que à noite elas iriam para Além Paraíba ver um show da dupla Sá & Guarabyra. E riu:
– Vamos ver a paixão da Maria Antonia!
Eu tinha que perguntar, rindo meio sem jeito:
– E quem á a paixão da Maria Antonia?
– É o Gua-ra-by-ra! – riu Helena uma risada cristalina. Para meu consolo, Maria Antonia retrucou de imediato:
-É… E essa aí é apaixonada pelo Sá!
Fiquei petrificado pela dúvida. Dizer quem eu era? E se isso atirasse as duas no fundo de um irremediável sem-jeito que estragaria a viagem? Avaliei a timidez da dupla e resolvi ficar na minha. Lá pras tantas, Helena tirou uma fita cassete da bolsa: era o “Quatro”, nosso disco de 79.
– Você gosta?
– Sou vidrado neles! – narcisei eu.
E lá fomos estradas afora, ouvindo-nos e conversando sobre nós. As professorinhas não davam sinal de me reconhecer, embora falassem com certa familiaridade do nosso repertório mais recente. Afinal resolvi que não deixaria que Helena e Maria Antonia suspeitassem que haviam pego uma carona justamente comigo, deixando que elas passassem nossa hora de viagem restante contando suas vidas simples e solidárias, dedicadas a um ideal descomplicado que trazia junto com o salário mínimo o sorriso de adultos e crianças que descobriam no poder das palavras um renovado encantamento naquela lonjura perdida entre serras e rios. Maria Antonia descreveu a situação com sabedoria e simplicidade:
– Acho que a gente é o que faz eles se sentirem dentro do mundo.
Chegamos finalmente à pequena Sapucaia, não sei se pequena ainda hoje num tempo em que os aviões comandam nossos deslocamentos e não acho mais tempo pra cair na estrada do jeito que gostava. Na beira da Rio-Bahia, deve ainda ser parada de camioneiros, travessia de aventureiros, entroncamento de sei lá que sonhos. Foi ali que deixei Helena e Maria Antonia, sem que elas soubessem que mais tarde me encontrariam no show. Não sei sequer se elas realmente me viram no palco, porque naquela mesma noite, logo depois do espetáculo, tivemos que seguir para Leopoldina e não pudemos receber a galera no camarim. Mas guardei comigo seus sonhos, simples sim, mas grandiosos no seu significado e alcance.
Nós, artistas, temos que lutar diariamente contra a sensação de onipotência, contra os ataques de arrogância, contra a fascinação do sucesso. Helena e Maria Antonia, naquelas breves duas horas em que estivemos juntos, deram-me armas poderosas contra isso tudo. Devo a elas um eterno agradecimento por sua contribuição para minha possível melhora diária como ser humano. E cada vez que me acho muito, que me sinto por cima, que me creio maior, me pergunto onde andarão, o que serão e como pensarão hoje Morena e Branquinha, as duas professorinhas de Sapucaia.