Por Mario Sergio Cortella
Na segunda metade do século 20, de profundas e rápidas mudanças tecnológicas, o diabólico – que, se tomado em sua acepção etimológica mais simples, significa: jogar separado, desagregar – parece ter-se metamorfoseado de muitas maneiras, ganhando ares mais eficazes e potentes: a magia do cinema, a companhia do rádio, o vício da televisão, a liberalidade do videocassete e depois do DVD, o ensimesmamento do walkman, a narcotização do videogame.
Mas, eis que surge a suprema metamorfose (por reunir em si todas as anteriores) a encarnação luciferina: o Computador. Aí foi demais. Se pudemos conviver de forma medianamente pacífica com as outras metamorfoses (às vezes ignorando-as, outras vezes nos deixando possuir), essa trouxe uma ameaça fatal: ele é especialista em inteligência, a nossa especialidade. Pior ainda, ele é especialista em algo impossível para muitos de nós: inteligência artificial, sem materialidade, sem peso, sem odores, sem carne, sem sentimentos; enfim, desumana.
Pronto, aí estaria a saída para os que querem rejeitá-lo, combatê-lo e derrotá-lo: sua desumanidade. Ele sim, o computador atemoriza, pois tem inteligência. Mas, ela é “artificial” e, por isso, diriam alguns, merece ser exorcizada, na busca de uma vida mais “humana”.
Nesse caso, o equívoco maior é mergulhar preventivamente na informatofobia, marcada pelo medo preconceituoso e gerador de rejeições que, sem dúvida, bloqueiam a exploração adequada desse instrumento humano.
Porém, há ainda outro equívoco: supor que a informática é a “solução final” para os problemas da humanidade, entendendo que, sem o computador, não é possível produzir uma existência coletiva digna.
Vivemos atualmente uma espécie de síndrome da modernidade: tudo o que estiver envolvido em uma aura de tecnologia em sua produção e disseminação é considerado de qualidade positiva. Sendo a informatização, com toda a razão, entendida como a marca mais significativa destes tempos, o que a ela estiver atrelado ganha um pendão de moderno e, portanto, de imprescindibilidade. Ser imprescindível nos nossos dias é o quesito mais atraente para a aquisição de uma mercadoria qualquer; a noção central é: você não pode ser completo sem isto, senão… estará ultrapassado e deixará de ser “up to date”! A novidade, mesmo aleatória, continua sendo o obscuro objeto do desejo de muita gente.
É preciso cautela com a informatolatria. Tecnologia em si mesma não é requisito exclusivo para avaliar e fomentar a qualidade da produção e da vida humanas. Afinal, não é a utilização de avançados “editores de textos” que possibilitou, por exemplo, a elaboração de grandes obras na literatura; a maioria delas, até hoje, foi registrada com estiletes, penas de pato, grafites, canetas ou máquinas de escrever e pode, também, originar-se de computadores.
Ademais, o impacto das tecnologias informatizadas em relação à qualidade de vida das pessoas pode ser medido no seguinte exemplo: nos anos 70, uma datilógrafa trabalhava em um escritório, usava máquina de escrever manual, ganhava dois salários mínimos, trabalhava oito horas por dia e vivia mal; nos anos 1980, o escritório adquiriu uma máquina de escrever elétrica e ela continuou a ganhar dois salários mínimos, trabalhar oito horas por dia e a viver mal; nos anos 1990, o escritório informatizou-se e ela continuou com seu salário, jornada e condição de vida. Ou seja, continuou na mesma! Infelizmente, essa situação caricatural pode ser estendida a outros campos da atividade humana.
Será a inteligência artificial uma ferramenta demoníaca ou, finalmente, estamos prestes a redimir Prometeu por nos ter entregado o fogo roubado dos Deuses?
Mario Sergio Cortella
Filósofo, escritor e palestrante, com mestrado e doutorado em educação. Foi professor titular da PUC-SP (1977-2012) e secretário municipal de educação de São Paulo (1991-1992). É articulista e comentarista de diversos programas de rádio e TV.